Semente
Servente de pedreiro, Luís, aos 40 anos mora com a sua mãe. Dona Chica é uma mulher de baixa estatura, miúda em todas as possíveis formas. Seu corpo parece querer desaparecer em vida, se encolher até a não existência. Apesar da pequenez, seus músculos são rígidos, como o corpo de alguém que está no aguardo de uma ação violenta da vida. Sempre rígido, com musculatura forte, seu corpo cria forte contraste com seus olhos, que exprimiam a fraqueza e o medo de morrer e de viver. Olhos mortos, pálpebras leves, como se a energia investida nos músculos do braço a impedissem de ter forças para olhar.
Mãe solteira, foi desprezada pelo namorado após engravidar, 40 anos e 9 meses atrás. Desde então, trabalha como empregada para sustentar a si e ao filho. Nunca mais pensou em se envolver emocionalmente com outro homem. Seria devota ao filho até a morte.
Pegava todos os dias 3 ônibus para chegar em casa. Cabelo desgrenhado, raízes cor de pérola sob o sol, amarrado com um rabicó cor de areia, que usava como pulseira no pulso quando queria deixar o cabelo solto por algumas horas. Mas logo o rabicó deslizava suavemente de volta ao seu lugar de direito: no topo da cabeça de Dona Chica.
A casa tinha dois quartos, uma cozinha, onde ficava também a máquina de lavar e um banheiro. Sem sala mesmo, pois não tinham visitas. A casa de alvenaria não havia sido terminada. Começaram a construir há uns 10 anos, ela e seu filho, mas o acabamento era a parte mais difícil. Havia umidade nas paredes, a parte externa ainda sem pintura, somente com a grossa camada de cimento formando pequenas agulhas.
Luís nunca perguntara muito de seu pai. O rapaz cresceu como pôde e por onde encontrou espaço. Sempre trabalhou e ajudou a mãe em casa, pagando algumas contas. Tarefas domésticas nunca foram seu forte. Terminou o ensino médio por insistência da mãe mas também nunca foi muito adepto aos estudos. Gostava da sua vida: acordava cedo, preparava uma garrafa de café e levava ela até o trabalho, onde sentia o líquido quente descer por sua garganta, queimando-lhe a língua. Às 18 horas seguia a pé para casa, onde sua mãe lhe esperava com o café e o pão caseiro na mesa.
Por um desses motivos que não são muito bem explicados pela ciência, que não se resumem à matemática, que estão sujeitos a inúmeras influências da vida, Luís, com seus 40 anos, começou a usar crack.
Já havia usado outras drogas antes, principalmente maconha na adolescência. Droga inofensiva. Não o prejudicaria nem ninguém precisava saber. Usava com amigos, não sabia bem o motivo mas o fazia se sentir bem. Tranquilo, relaxado, um filósofo contemporâneo. Logo a fase passou.
Agora, aos 40, por motivos que não interessam a mim nem a ti, motivos que não especularei, Luís está usando crack. Começou como uma brincadeira, um colega do trabalho ofereceu pra ele no caminho de volta para casa. Aceitou.
Luís acreditava estar no controle da droga. Usava aos finais de semana, às vezes sábado, todo domingo, na casa desse colega. Num determinado domingo usou demais, não trabalhou na segunda. Duas semanas depois, usou na segunda também. Chegou atrasado na terça. Faltou na próxima terça. Foi demitido.
Um mês depois, sem emprego, sete quilos a menos, começara a segurar sua calça na cintura com a ajuda de cadarços. Luís não percebeu imediatamente sua falta de controle. Acreditava que os últimos acontecimentos da sua vida era resultado de suas escolhas e de suas vontades. A droga o fazia sentir vivo, poderoso. De que lhe importava que suas calças haviam começado a cair?
Começou a vender coisas de casa para sustentar seu vício. O mal do crack é o efeito de curto prazo. Nada é capaz de aplacar a fissura pela droga. Vendeu seu perfume, presente de uma ex namorada, por vinte reais, seu cinto que já não lhe servia e um sapato velho por dez reais. E foi vivendo assim por alguns meses.
Dona Chica via a situação do filho, mas não sabia muito bem como lidar. Via, mas tentava não deixar essas visões entrarem no campo de sua consciência. Via com seus pequenos olhos, semi cerrados pelas pálpebras pesadas de quem não quer ver mais muita coisa.
Luís passava seus dias e noites sem saber se eram dias ou noites. Saía e voltava quando bem entendesse e, numa de suas voltas, naquela terra batida tomada por mato que tinha no quintal de sua casa, viu uma planta diferente. Planta rasteira, Luís pensou tratar-se de uma aboboreira. Mostrou à sua mãe que concordou com o prognóstico.
Conforme a planta crescia, notava-se algumas diferenças. A folha era diferente, a textura também. Até que surgiu uma pequena melancia. Uma melanciazinha. Dona Chica ficou felicíssima. Uma melancia crescendo, do nada, no seu quintal!
Durante dois meses, aquela melancia foi bom agouro para mãe e filho. Falava de um tempo futuro de colheita, de suculência e de desfruto de prazeres.
Dona Chica até sonhava com o dia em que abriria a casca dura da fruta e a morderia, sem se importar com caroços, deixando o suco escorrer-lhe pelo canto da boca e pelas mãos, até o cotovelo, formando uma pequena poça na mesa, deixando-se morrer naquele suco vermelho e devasso.
Luís se divertia com o desejo da mãe, que todo dia chegava em casa e comentava sobre a melancia que estava quase boa, crescendo no jardim.
Uma tarde, Luís voltou pra casa fissurado. Tinha acabado de fumar uma pedra, mas precisava de mais. Estava determinado a arrumar algo para vender ou trocar por mais um pouco de droga. Abriu o portão e deu de cara com a melancia. Estava enorme, foi custoso levantá-la.
Às cinco horas, quando a mãe chegou em casa, Luís estava sentado na cadeira, olhando para um lugar que não aquele.
- Luís, você já cortou a melancia? — disse Dona Chica, ao abrir a geladeira procurando pela fruta, com a pupila dilatada e vida na voz.
- Mãe. Eu a vendi.
Dona Chica permaneceu assim por eternos segundos, de pé, em frente a geladeira vazia, sem a fruta inteira e sem a fruta repartida.
- Você vendeu por quanto, Luís?
- Dez reais.
A mãe virou-se para o filho, com os olhos cheios de algo novo, que por segurança não me atrevo a decifrar, mas que lembravam ligeiramente a rigidez de seus músculos e disse:
- Te daria vinte para me deixar comê-la.
Com essa frase Luís viu que havia perdido o controle. Se internou voluntariamente e ficou sob tratamento por nove meses, ansiando o dia em que voltaria para casa de sua mãe com uma melancia nos braços. Não uma melancia cortada ao meio, dessas de supermercado. Uma melancia inteira, para que pudessem cortar juntos e ver o suco vermelho escorrer na pia da cozinha.
- Escrito em 3 de novembro de 2018 por Barbara Albuquerque, do Corpo de palavra