Era uma vez
Clarice Lispector conta no seu texto “ainda impossível” que sempre quis escrever uma história que começasse com “Era uma vez…” mas, ao ter escrito a primeira frase, viu imediatamente que ainda era impossível, e havia escrito: “Era uma vez um pássaro, meu Deus.”. Gostaria de começar essa apresentação assim: “Era uma vez um cartel sobre literatura e psicanálise, meu Deus”.
Tenho uma sensação quase palpável de que pouco ou quase nada restou, de que os textos, as letras, os livros lidos, atravessaram meu corpo e partiram para algum outro lugar. Então não vou me apegar a uma proposta de identificar e explicar os conceitos aprendidos. Como nosso cartel foi sobre Literatura e Psicanálise, vou falar de escrita, tentando entender para onde foram todos esses assuntos, deixando o meu corpo. Aqui.
Minha proposta é falar de inconsciente para inconsciente. De tal forma que, quando chegar ao fim este texto, o ouvinte já não lembre mais do seu começo e que amanhã já não lembre do seu fim. Que saia daqui sem entender bem a quem me dirijo, porque me dirijo e qual a intenção do meu discurso. Gostaria de escrever como quem escreve ao nada, sem pretensão de coisa alguma. Mas acredito que isso não seja possível, afinal há sempre um Outro que me escuta. Hoje, meu discurso será lançado a vocês e, depois, na melhor das hipóteses, ao lixo, como tem que ser.
O que falei até aqui, o começo desse texto, estava pronto há um tempo, resultado de uma noite de insônia. O que se segue escrevi nessa última semana, na reta final, como a maioria das minhas produções acontecem. Na noite desta quinta-feira, já transtornada sem saber o que fazer a respeito dessa produção que não era possível de produzir, recebi um vídeo de um amigo, historiador e entusiasta da psicanálise e literatura, dando aula na UFPR.
Nessa aula ele falou sobre os “Voos da morte”, uma prática militar onde milhares de presos políticos foram drogados e atirados ao mar, ainda vivos. A denúncia foi feita pelos corpos, que retornaram à costa marítima, cerca de 200 km a sul de Buenos Aires. A respeito desse acontecimento, que ocorreu no final dos anos 70, Luís Veríssimo escreveu seu texto “Como na Argentina”, que lerei alguns trechos:
“Não é fácil eliminar um corpo. Uma vida é fácil. Uma vida é cada vez mais fácil. Mas fica o corpo, como o lixo. Um dos problemas desta civilização: o que fazer com o próprio lixo. As carcaças de automóveis, as latas de cerveja, os restos de matanças. O corpo bóia. O corpo vai dar na praia. O corpo brota da terra, como na Argentina. O que fazer com ele? O corpo é como o lixo atômico. Fica vivo. O corpo é como o plástico. Não desintegra. A carne apodrece e ficam os ossos. Forno crematório não resolve. Ficam os dentes, ficam as cinzas. Fica a memória. […] Tapar os corpos com escombros não adianta. Sempre sobra um pé, ou uma mão. […] Valas mais fundas, mais escombros, nada adianta. Sempre sobra um dedo acusando. O corpo é como o nosso passado, não existe mais e não vai embora. Tentaram largar o corpo no meio do mar e não deu certo. O corpo bóia. O corpo volta. […] O corpo incomoda. O corpo faz muito silêncio. […] Memórias não apodrecem. Ficam os dentes. […] ainda não resolveram como acabar com o lixo.”
Esse amigo chegou com esse texto numa hora precisa, preciosa. Para mim, não há como falar de escrita sem falar de um corpo, de uma denúncia, de uma recusa a deixar-se perder mar adentro. Inclusive, “litoral” é um dos conceitos mais importantes quando estamos falando da literatura para a psicanálise.
James Joyce, num equívoco, estabelece uma relação entre letter e litter, de uma letra a um lixo. Roland Barthes fala que sentia grande tédio com as lições de gramática e que antes é preciso saber, mas depois é preciso esquecer pois só assim se começa a respirar livremente. Lispector falava que escrever é o modo de quem tem a palavra como isca para pescar o que não é palavra. Não faltam escritores falando sobre o vazio da escrita, sobre a repetição que é dizer, dizer e continuar tendo muita coisa para dizer, dizer.
Minha experiência com a escrita começou na adolescência, muito antes de começar, de fato, a escrever. Lembro-me de ler por muitas horas seguidas, sair pelas ruas do bairro que cresci em Curitiba e ficar narrando na minha cabeça as cenas que eu via. As folhas caindo, as crianças correndo, os pais com os filhos na fila do supermercado, o senhorzinho parado na esquina, minha vizinha comprando pão, o carro do churros, um cara vestido de teletubbies vendendo algodão doce na rua… A narrativa acompanhava letras que eu quase podia ver atravessando todas essas imagens, dançando, circulando. Imagem e letra. Foi assim que começou. Era uma vez imagens e letras…
Essas letras custaram a sair do meu olhar, custaram a descer o caminho do olho até a boca e atravessar meu túmulo, custaram a sair pelos meus dedos e alcançarem algum lugar no mundo. Foram se aventurar em páginas brancas só no setting terapêutico, lá por volta dos meus 20 anos. Quando cheguei ao final do curso de psicologia, fiz meu TCC sobre isso: A escrita e o setting terapêutico: o que se escreve e o que se diz. Entendi que a folha em branco do caderno não era assim tão diferente da divã, onde se fala olhando para uma parede vazia. (Às vezes tem um quadrinho que serve só para quebrar um pouco a sensação de vazio que sentimos ao deitar no divã a primeira vez.) Esse trabalho não foi feito para o curso de psicologia, foi um trabalho analítico. Escrevi como alguém que se esforça para colocar um pouco de (des)ordem nos próprios escritos.
Um fato curioso: os eventos psicanalíticos importantes que aconteceram no meu percurso receberam sempre uma produção escrita, o que percebi com algum espanto somente agora, ao fim deste cartel, quando me perguntei sobre o que seria meu “Era uma vez”. Com a análise anterior, surgiram os contos, que me separaram do mundo; surgiram as crônicas solitárias e não compartilhadas, escritas por mim e para mim. Com a análise recém iniciada, surgiu uma carta de ódio que foi muito importante para entender como eu amo. Com esse cartel, surgiu um desejo forte e o início de um possível romance e surge agora esse texto que é, acima de tudo, um resgate da minha história com a escrita. Mas a escrita de quê, afinal?
Lacan afirma que a psicanálise é, sobretudo, uma experiência de linguagem. Para ele, é sempre através das palavras que o homem pensa e dá sentido às suas experiências. As aproximações possíveis entre a escrita e o processo de análise são, esperadamente ou desesperadamente, de ordem poética. O ato de pôr uma nova história em palavra — a ficção literária — se assemelha à criação em análise. Em cada sujeito, uma verdade e uma criação. Disse, sabiamente, Manoel de Barros: “Tudo o que não invento é falso”. Só tem peso de verdade, ou leveza de verdade, dependendo do ponto de vista, aquilo que temos a capacidade de inventar.
No livro “Escrita e psicanálise”, bastante utilizado por nós durante esse ano, há um artigo da Beatriz Guimarães que diz que o sujeito não é anterior à escrita, mas é produzido a partir dela — se produz e desaparece. Esse afastamento é o que permite a leitura do inconsciente e sua reescrita — processo ao qual a psicanálise se dedica com tanto esmero.
A questão é que o sujeito nunca desaparece. O sujeito sempre retorna ao litoral. Os corpos sempre reaparecem na praia. O corpo é emergente, é urgente.
Cabe aqui um recorte do romance que tenho trabalhado desde que esse cartel começou a anunciar seu fim:
Viveu os dias, as semanas que se seguiram sem de fato processar o que estava acontecendo. Essa era uma de suas principais características, não conseguia atribuir sentido em nada. Faltava-lhe algo muito essencial que é o que faz as pessoas inventarem, criarem, sonharem.
Eva era esse conjunto de braços, pernas, tronco e cabeça que caminhavam juntos, embora desconexos. Tinha a sensação de que esse conjunto não se completava. Eram pedaços. Não era ainda corpo. Corpo é esse negócio que a gente inventa a respeito desse amontoado de carne, sangue e vísceras. Corpo é uma história que cada um pode criar. Corpo é feito de palavras e Eva não tinha um bom repertório delas. E eu posso te contar isso pois, de alguma forma, consegui fazer algo desse espaço vazio e sem palavras, escrevo sobre isso e transcrevo a história de Eva, enquanto ela mesma não fazia a menor ideia de que tudo isso podia ser dito a respeito de si mesma.
Retomando, um corpo só acontece quando se escreve. Essa mão que digita só existe porque escreve a si própria. Polegar, indicador, médio, anelar, dedinho. Falanges, carpos, metacarpos. Osso, nervo, sangue, pele. São tantas as linguagens que criamos!
Ainda assim, o corpo sobra: a linguagem não tem virtude de ser corpo. Ainda assim, é preciso escrever. É isso que fazemos o tempo todo. Escrevemos, reescrevemos, editamos, deletamos, acrescentamos, mudamos, transformamos, rejeitamos. O literal, litoral, lutoral sempre volta. O dedo que aponta sempre reaparece. Podemos queimar o corpo, sempre sobram os dentes denunciando nosso túmulo.
No fim, meu corpo é o lixo que sobra. O que se faz com o lixo que sobra? Não se faz, só se deixa sobrar e se faz com a sobra. Lancemos o lixo ao lixo.