Conversas mudas
Há muito esperei por aquele momento. O momento de me aventurar em um olhar, esse outro olhar que me ofereceu um lugar, que me ofereceu um corpo e que, com essa oferenda, me permitiu desejar. Me fez querer tocar, acariciar, beijar, lambuzar, suar, respirar, olhar, partir.
Nessa noite tão improvável, que parecia mais uma noite entre tantas quaisquer noites, meu olhar cruzou com o seu e por dentro…
Escorremos…
Alguma coisa caiu, quase pude ouvir o barulho. Havia em você algo de novo que me chamou atenção e que fez perceber, e é aí que está a novidade, que eu também chamava a sua atenção. Percebi que na roda de amigos que estávamos, quando você falava, era em mim que seu olhar caía.
Foi isso que caiu? Seu olhar em mim e o meu em ti? O que mais cai junto com nossos olhares?
Engraçado que quando você fala, não fala nada que eu possa entender. Me disseram que você não é daqui, que está “conhecendo” o mundo. Não estamos todos conhecendo o mundo? Gostaria de conhecer o seu.
Num momento de ousadia e coragem, vou até você e te pergunto se fala português. Você diz que não. That’s ok, podemos conversar em inglês. Trocamos algumas frases, pergunto se você está bem e por quê se isolou do grupo. Você diz que está bem e que gosta também de ficar sozinho, mas que poderia estar melhor se estivesse acompanhado. Me olha mais fundo. Bem mais fundo. E sorri. Algo se quebra dentro de mim de novo.
Conversamos mais um pouco e agora você, num momento de ousadia e coragem, deposita seus lábios em minha bochecha, quase que pedindo permissão para me beijar, descobrindo até onde pode ir. Eu sorrio e deposito meus lábios em sua boca. Bem de leve, só para dizer que você pode ir até onde quiser.
Um minuto depois você me convida para ir até seu apartamento. Fica a poucas quadras daqui, me diz. Eu, já não pensando direito, já mais-corpo-que-cabeça, me deixei guiar pelos seus passos firmes e decididos mas, ainda assim, cautelosos. Não me lembro quantas vezes me disse que tudo bem se eu quisesse voltar para o bar e que tudo bem se a gente só ficasse conversando quando chegássemos ao seu apartamento.
Acho graça do seu cuidado. Seguro meu passo e me aventuro num beijo demorado. Ali mesmo, no meio da rua.
Me lembro que quando chegamos no seu andar, você se desculpou dizendo que seu quarto era muito pequeno. Por que pedir desculpas? Você diz que não sabe, mas que era bom que eu não me importasse. Quando abriu a porta do apartamento, tudo que pude ver era a linda vista que você tinha do centro da cidade. Quase natal, com tantas ruas iluminadas e de frente para uma das praças mais belas da capital paranaense. Será que a vista dos seus olhos era sempre assim? Será que via sempre tudo tão iluminado, tão imenso e tão lindo? Se eu parasse naquele momento, em frente àquela vista, poderia chorar.
Fomos para o seu quarto e da sua pequena janela outra linda vista da Praça Tiradentes, a segunda mais bonita da cidade, na minha opinião. Você tirou parte de sua roupa e disse rindo: That’s me. Eu ri junto. Esse é você? É um prazer te conhecer.
Enquanto estávamos ali, nus, você me falou a única frase em português de toda a noite: Você é muito bonita. Não respondi. O que poderia dizer? Você também? Obrigada? Não respondi e, ao mesmo tempo, respondi tudo isso. Acho que você entendeu.
Adormecemos e acordamos algumas horas depois com o sino da catedral nos lembrando que havia mundo do outro lado daquela janela. Em silêncio, nos vestimos e partimos. Naquela hora a vista estava ainda mais linda. Cinco horas da manhã, o dia já começava mas as luzes da cidade ainda estavam acesas, fazendo tudo cintilar e vibrar e acender. Dentro de mim.
Me despedi como quem se despede de alguém que nunca mais irá ver. Um abraço apertado, você me agradecendo. Assim: Thank you. Obrigada pelo quê?, pensei. Por tudo, imagino. Obrigada também. Não falei nada.
Volto andando para casa, quase 2 horas de caminhada, ouvindo músicas e me emocionando com as cores do novo dia que vão pintando o céu. As cores de dois amantes que nunca mais irão se ver.
Troquei contato com alguns amigos que conheci no bar naquele dia e dediquei pouco tempo te procurando nas redes sociais. Tinha medo de te achar. Dois dias depois, um desses amigos postou uma foto e te marcou. E lá estava você de novo. Como eu poderia ignorar? Queria ao menos ver seu rosto, já borrado em minha lembrança. Te segui e você me seguiu de volta. Antes que pudesse aceitar, você me manda uma mensagem: Oi! Você é a moça de sábado?
Quando te segui, segui com a esperança de que você permanecesse naquela rede como uma boa lembrança de uma noite mágica. Em partes, não queria receber sua mensagem. Tinha medo da realidade que espreitava pelas vidraças da janela. Mas respondi: sim, sou eu. Você disse que estava me procurando, que a hora que fui embora você se lembrou que não trocamos contato e isso te deixou triste mas que, ao mesmo tempo, não havia nada pelo que se lamentar, que tinha sido uma noite incrível: so good and uncomplicated. Me chamou para sair novamente e eu, ainda com muito medo desse real que me assombra, concordei.
Saímos. Estava muito nervosa por ter que falar com você em inglês. Bêbada, faço isso com facilidade; sóbria, fica um pouco mais difícil. Mas quando você chegou eu lancei logo um: Oi! Tudo bem? E você me respondeu em meio a um abraço: Oi! Estou bem e você? Com a sua resposta, me dei conta de que falei em português. E que você respondeu em português! Pergunto quão bem você fala a minha língua. Eu falo português!, você responde.
Quê?
Descobrimos então que lembramos pouco da noite de sábado, mas que nossas memórias se completam. Você acha graça quando me justifico dizendo que estava falando com você em inglês por mensagem porque sábado você me disse que não falava o português. O que deu em você?, nos perguntamos. Não sabemos responder.
Apesar de falar português, você diz que fica agradecido por eu também entender inglês. Algumas palavras você desconhece e me pergunta como dizer: Como fala quando não quer fazer nada? Entediado?, te pergunto. O que é “entediado”? Entediado significa bored. Yes, bored. Eu estava num momento de entediado. Achei bonito o uso de um adjetivo no lugar do substantivo, não te corrigi.
Curioso: nos comunicamos melhor em uma língua que não é nem minha nem sua, mas é uma língua comum. Uma língua em comum. Ou língua nenhuma. A língua muda e, com ela, muito muda. Num momento de silêncio, você me diz que é possível dizer muito sem falar nada. Com a cabeça deitada no seu ombro, concordo, em silêncio. E é também em silêncio que caminhamos até seu apartamento.
Novamente me deleito com a vista e dessa vez comentei com você. Você me responde que se sente muito privilegiado de acordar todos os dias naquele quartinho pequeno de vista tão grande.
Mas desta vez, nus, só estamos nus. Há real demais. De repente, com tantos luzes da praça da catedral, somos dois estranhos. Não falamos a mesma língua. Não viemos do mesmo lugar e não vamos para o mesmo lugar. Não há mais uma apresentação oficial. Não há um that’s me.
Dessa vez, quando o sino da catedral toca, é só o sino da catedral lembrando que já é tarde e que é melhor ir para casa pois tenho que trabalhar cedo no dia seguinte. Pergunto se você pode me acompanhar até meu carro pois tenho medo de andar sozinha no centro da cidade àquela hora. Você diz que sim, claro.
O silêncio ainda diz muito. Mas não diz sobre mundos comuns, diz sobre abismos. Quando você está pensando, pensa em qual língua?, te pergunto. No sei. Alguns minutos depois, repito a pergunta. Acho que se preciso dizer, quando em pensamento, acho que penso em inglês, você responde. Mas não precisava dizer.
Mudos, colocamos nossas roupas, você me entrega minha bolsa e saímos.
Mudos.
Enquanto você destranca a porta da entrada e, agora, saída, decido tirar uma foto daquela vista. Seria bonito o contraste entre o escuro do apartamento e as luzes bruxuleantes lá de fora. Uma foto de duas lembranças: uma, fantasia demais, perfeita, sem palavras e a outra, real demais, abismal, muda. Quem sabe essa foto pudesse ainda retratar um pouco da fantasia de sábado que eu queria me lembrar. Mas, antes que eu pudesse bater a foto, você acende a luz. Não pude deixar de evitar um sorriso. Um sorriso triste, mas um sorriso.
Dessa vez, me despeço com abraço. Um abraço que damos em alguém que sabemos que nunca mais iremos ver.